Será normal querer viver pior?

Segundo notícias recentes, o Bloco de Esquerda propôs a redução de 4 horas (10%) na semana de trabalho: redução de 40 para 36 horas, nove horas diárias distribuídas por quatro dias.
A proposta pode ser utópica nas actuais circunstâncias e, especialmente, perante a mentalidade reinante, mas historicamente não tem nada de extraordinário.

Extraordinárias são as reacções que li em comentários, nomeadamente online no Correio da Manhã e Portugal Diário. Alguns comentários levam a coisa para a brincadeira, mas a maioria ficou escandalizada, salientando o aspecto da redução de um dia de trabalho (quando na realidade é apenas meio dia em cinco) e da necessidade de produzir riqueza (que não é o que está em causa).

Mesmo que a redução de horário fosse já superior, não é nada que não tenha vindo a acontecer ao longo da História. Se não fosse assim, ainda hoje estaríamos a sair das cavernas de manhã para ir à caça e voltar à noite, todos os dias da semana. Ou estaríamos a trabalhar de sol a sol, descansando apenas ao domingo, o único dia santo da semana. Ou pelo menos teríamos um horário normal superior às actuais 40 horas.

O progresso ou evolução da Humanidade pode ter originado grandes problemas (como os ambientais), mas trouxe também algumas melhorias à condição humana, como o aumento da qualidade de vida. Aí inclui-se dispor de máquinas que facilitam o trabalho e libertam as pessoas para outras actividades. Se o progresso não servir para vivermos melhor para que é que queremos a evolução tecnológica? Se meia dúzia de máquinas tratam de um aviário, porque é que temos que "cumprir horário" e sair todos os dias de manhã para ir à caça?

Quem se escandaliza com a redução de 10% no trabalho semanal certamente não gostaria de voltar a trabalhar de sol a sol sete dias por semana. Mas se acham que trabalham pouco, então que façam e proponham a alteração das actuais 40 horas para 50 ou 80 ou de sol a sol (com ou sem descanso no Dia do Senhor), sem aumento do salário ou regalias. Ou, levando o raciocínio ao ridículo, trabalhem de graça (como os escravos). O patronato não vai recusar a proposta.

Obviamente há actividades que necessitam de pessoas a trabalhar mais de 36 ou 40 horas por semana. Obviamente a redução do horário semanal refere-se (como sempre, historicamente) às horas pagas ao valor normal; quando é necessário trabalhar mais, trabalha-se, mas paga-se horas extraordinárias ou emprega-se mais trabalhadores. Ora aqui é que está o problema. O patronato simplesmente não quer (historicamente nunca quis) reduzir os seus lucros, pagando mais ou dando trabalho a mais gente. Por outras palavras, também não está interessado na redução da taxa de desemprego.

O que eu estranho, e realmente me escandaliza, é que os próprios trabalhadores não vejam isso. De acordo com os comentários a esta notícia, há trabalhadores que não querem a redução de 10% das horas de pagamento normal e, consequentemente, não querem receber mais por eventuais horas extraordinárias.

Será isto normal?

(Não tenho nada a ver com o BE)

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3 comments:

António Manuel Dias said...

Qualidade de vida é uma coisa subjectiva e, se na maior parte dos casos se pode ligar desenvolvimento tecnológico a maior qualidade de vida, nem sempre isso acontece, ou pelo menos não aos olhos de todos.

Lembro-me de ter lido, penso que numa revista da National Geographic, já há uns anos, sobre a descoberta de uma tribo desconhecida nas florestas da Indonésia. Viviam na idade da pedra, como caçadores recoletores e o seu ritmo de vida diário era simples: levantavam-se pouco depois do nascer do Sol, desciam da árvores onde tinham as casas (ninhos?) e iam à pesca, apanhar frutos ou folhas ou recolher pequenos vermes e crustáceos de água doce. Tudo isto demorava-lhes cerca de duas horas, após o que recolhiam novamente aos 'ninhos', comiam o que tinham apanhado, brincavam com as crianças, falavam e contavam histórias e dormiam o resto da tarde, até que, perto do pôr do Sol, voltavam a fazer o mesmo para a refeição da noite, que era mais leve. Ao todo, trabalhavam pouco mais de três horas por dia, tendo o resto do tempo todo para todas as outras actividades privadas e sociais -- será que é isto qualidade de vida? Bem, na opinião desses indivíduos, provavelmente! Na minha? -- eu até gosto de calma, e tal, mas não aguentaria mais do que uma semana a viver assim...

Francisco said...

Para mim, qualidade de vida também é menos de uma semana nas selvas da Indonésia...
Para mim, qualidade de vida é trabalhar menos 10% (proposta do BE) e ter mais 10% de tempo livre para viver mais com a família, nomeadamente as crianças.
Para mim, qualidade de vida é o patronato prescindir de tantos lucros, pagando horas extraordinárias ou dando trabalho a mais gente (se for necessária mais actividade naqueles 10% de tempo ou mais).
Isto é a minha opinião. Há quem prefira trabalhar mais e viver menos, ser escravo do trabalho e do dinheiro, ser escravo do patrão. Como disse alguém, gastam a saúde a ganhar dinheiro para no fim gastarem o dinheiro a tentar recuperar a saúde.
Triste é que, num país que tem das maiores diferenças entre muito ricos e muito pobres (pelo menos na Europa), haja tanta gente que prefira continuar escravizada.

De facto este senhor Sócrates é muito mais esperto que o Salazar.
O Salazar dominava o povo mantendo-o na ignorância e aplicando umas boas doses de ditadura pura e dura quando necessário.
O Sócrates (e afins) domina o povo através de uma bem montada máquina de propaganda, onde se inclui a pseudo-informação. Todos os dias sai o valor do déficite e da inflação até à centésima, toda a gente "sabe" a previsão do FMI para os próximos 247 dias e meio, toda a gente "sabe" que a baixa do Índice PSI 20 da semana passada vai afectar a sua pensão daqui a 38 anos. Enfim, toda a gente "sabe" tudo, a pseudo-informação rodeia-nos por todos os lados (até em painéis gigantes nas zonas de bichas em Lisboa), e assim ninguém duvida de nada, ninguém põe nada em causa. O que Sócrates (e afins) e os seus amigos banqueiros e empresários dizem é repetido como verdade absoluta à velocidade da luz. Não estou a exagerar. Basta ouvir as conversas e ler comentários como aqueles na notícia que referi.

António Manuel Dias said...

Totalmente de acordo. Aliás, estou a sofrer isso na pele agora mesmo -- em todo o lado se leu e ouviu que as escolas primárias se ocupariam das crianças entre as 9 e as 17 e teriam inglês e não haveria trabalhos de casa e estariam a funcionar em pleno durante a semana passada. Pois. A verdade é que o horário é o mesmo do ano passado, ainda ninguém sabe o que irá acontecer nas duas horas extra por dia, não há professores/monitores contratados para as actividades mencionadas, estando as crianças, para já, na brincadeira durante esse tempo, entregues a umas (poucas) auxiliares de acção educativa... e ela continua a trazer trabalhos para casa. E atenção que esta é uma escola especial -- há por exemplo escolas em que simplesmente não há espaço onde colocar os alunos, já que tinham dois turnos em funcionamento. É claro que liga-se a televisão e o arranque do ano escolar foi uma maravilha...

Mas voltando ao meu comentário anterior, apenas queria quebrar a ligação entre progresso e qualidade de vida que mencionaste no teu artigo. Apesar de, no geral, a ligação parecer existir, achei que devia salientar o facto de se estar a estabelecer uma ligação entre coisas objectivas e subjectivas.